"A prioridade sempre deveria ser o transporte público"

Jaime Lerner é um dos pensadores mais influentes do mundo. Quem diz isso é a revista norte-americana Time que, numa lista divulgada em 2010, colocou o ex-governador do Paraná na XX posição na lista dos pensadores mais influentes. Somente ele e Lula - do Brasil - foram lembrados pela publicação. O motivo para a fama internacional de Lerner é o BRT (bus rapid transport), corredores exclusivos de ônibus que podem levar tantas pessoas quanto um metrô e com um custo menor. O sistema hoje foi exportado para mais de 120 países. "A visão de que é preferível dar prioridade a um sistema de transporte onde o ônibus tenha a perfomance de um metrô prevaleceu no mundo inteiro", disse Lerner.

Jaime Lerner, ex-governador do Paraná: Investir no automóvel é unicamente levar um carro mais rapidamente de um congestionamento ao outro | Foto de: Júnior Santos

Especialistas falam que o investimento em transporte público é o mais importante para uma cidade. Ao mesmo tempo, a política econômica do Governo Federal incentiva o uso do automóvel. Como o senhor vê isso?

O investimento sempre deve ser em transporte coletivo. Os investimentos em qualidade de vida podem ser uma grande fonte de empregos também. Só incentivo a bens de consumo às vezes não é a única solução. Mais importantes como geradores de empregos são os investimentos em qualidade de vida. E dentre esses investimentos um dos mais importantes é o investimento em mobilidade. Então, a prioridade deveria ser o transporte pública. O automóvel está fadado a ser no futuro o que o cigarro é hoje.

Os gestores hoje se preocupam em fazer uma política pública mais para os carros particulares que para o transporte público?

Veja: em boa parte das cidades, eles fazem isso. Mas é negativo, eu não concordo. A prioridade sempre deveria ser o transporte público, coletivo. Infelizmente, a opção de muitas cidades é o automóvel. Isso não tem futuro nenhum. Você investir no automóvel é unicamente levar um carro mais rapidamente de um congestionamento ao outro.

Como foi feita a mudança no sistema de transporte em Curitiba?

A primeira coisa é que não enxergamos o transporte como uma expertise em si. O transporte é parte de uma visão da cidade. O que Curitiba sempre adotou é que a cidade é uma estrutura de vida, trabalho e circulação, tudo isso junto. Então, a cidade é uma integração de funções. Toda vez que você separa as pessoas, morando num lugar e trabalhando em outro, ou separa as pessoas por renda, não acontece coisa boa na cidade. A integração de vida, trabalho e lazer e transporte tudo junto é necessária. Infelizmente, poucas cidades vêem isso. Aquelas que ainda optam pelo transporte público em muitos casos têm uma visão muito "rodoviarista" do problema. E o transporte não pode ficar isolado da solução da própria cidade. Essa foi sempre a visão de Curitiba. É por isso que o sistema de transporte começou, de forma pioneira, em 1976. Hoje ao criar o BRT conseguimos exportar para mais de 120 cidades no mundo inteiro, inclusive a Cidade do México, que é uma das maiores do mundo, Bogotá, cidades na China, na Europa, Seul, na Coréia do Sul. A visão de que é preferível dar prioridade a um sistema de transporte onde o ônibus tenha a perfomance de um metrô prevaleceu no mundo inteiro. No Rio de Janeiro, ao se preparar para a Olimpíada de 2016, a primeira idéia para solução de mobilidade. Nós tivemos participação nisso.

Neste caso, o que exatamente significa "juntar ida, trabalho e lazer"?

Porque uma coisa não está separada da outra. Não é pensar somente na melhoria do transporte. É pensar o transporte junto da moradia e do trabalho. Se um sistema só funciona de manhã e no final do dia, ele não se viabiliza. É preciso ter regularidade. E a solução para isso é pensar junto para que a cidade seja uma estrutura de trabalho, movimento e moradia.

O BRT é a solução mais imediatista, mais rápida, para a mobilidade das grandes cidades?

Eu acho que é a solução mais rápida e quando bem desenvolvida há uma ótima performance. Muita gente confunde o BRT com um corredor exclusivo de ônibus, mas não é só isso. O BRT é uma visão conjunta, com eixos de moradia, trabalho e transporte juntos. Se isso é possível, fica bom. Não é a mais imediatista. É a melhor. Uma boa operação, com um sistema de BRT bem operado, pode levar tantos passageiros quanto um metrô. E é de 50 a 100 vezes mais barato por quilômetro de implantação. Além disso, pode-se fazer em três anos e não esperar a vida toda. É a melhor opção.

Muitas pessoas colocam a existência de uma escolha necessária: ou o BRT ou o transporte ferroviário, de VLT e Metrô. Para o senhor essa contradição é verdadeira ou é possível utilizar os dois na mesma cidade?

O transporte de superfície é sempre uma solução boa. Existe um falso dilema: dar prioridade ao carro ou ao metrô. São Paulo está nesse dilema. A solução não é nem um e nem outro. A solução está em aproveitar o melhor para a situação específica e um bom projeto de mobilidade aproveita o que você tem e é possível fazer. Às vezes, algumas cidades terão uma ou duas, algumas linhas de metrô, mas a solução de mobilidade passa com certeza por uma boa solução na superfície, operar bem na superfície. É possível resolver essa questão em qualquer cidade do mundo, de forma rápida, a partir da superfície.

Isso inclui também o VLT?

Claro. Inclui o VLT.

E o investimento em ciclovias? É viável nas grandes cidades?

É viável, importante e deve ser estimulado

Isso foi estimulado em Curitiba?

Nós temos 120 quilômetros de ciclovia há muito tempo e isso deve aumentar cada vez mais.

A bicicleta também pode ser utilizada, para além do lazer, como um veículo viável para levar ao trabalho, escola, etc?

É um transporte como qualquer outro desde que tenha espaço adequado. Natal é uma cidade plana e muito adequada para esse tipo de transporte.

As ciclovias acabam estimulando as pessoas a usarem menos o carro?

O carro não é prioridade. Quanto menos importância você der para o carro, melhor se resolve o problema da mobilidade.

Voltando à questão da política do Governo Federal, as pessoas não podem parar de comprar os carros, pela importância para a economia. Como conciliar?

As pessoas vão continuar tendo carro normalmente. O que eu defendo é que nos itinerários de rotina deva existir a solução de transporte pública, seja individual ou coletivo. Você terá o carro para viagens, passeios, etc. O itinerário de rotina precisa passar pelo transporte público. Esse transporte individual não é só relativo à bicicleta. Há também, como existe em Paris, carros, pequenos, com um quarto do tamanho dos atuais, para ser um complemento do transporte público. É um carro elétrico, recarregável e pode ser compartilhado. Ele anda em vias que permitem, onde possa se conviver com a bicicleta. Esse é o caminho.

Todas essas mudanças implicam numa mudança cultural?

O que acontece é que existem sempre paradigmas e costumes que podem se modificar. Ninguém acreditava ser possível largar o cigarro. Independente de largar ou não, os espaços passam a ser prioritariamente para as pessoas que não fumam. É o que vai acontecer com o automóvel. O transporte público irá fazer o papel do cotidiano do automóvel. Não adianta você ter um automóvel que faz 150 quilômetros por hora e na prática você só pode andar a 10 quilômetros. Não adianta ter um carro pequeno dentro de uma rodovia. Também é um absurdo. Então, nós temos que caminhar para um transporte público urbano, sem que se elimine o carro para o passeio. Antigamente se dizia inclusive "carro de passeio".

Um gestor pode operar mudanças significativas em quatro ou oito anos, que é a duração de um governo?

Dá para fazer em três anos.

Como?

Eu acho que o tempo é relativo. O que existe é a demora nas decisões. Isso é terrível. As decisões são muito lentas.

Para que essa mudança ocorra, o que é mais importante: uma ideia ou recursos financeiros?

É a ideia, gestão e recursos financeiros. Às vezes, os recursos nem são tão importantes. É encontrar uma boa equação de co-responsabilidade. Um exemplo: nós tínhamos a necessidade de mais ou menos 250 milhões de dólares para renovar a frota em Curitiba. Qual foi a equação? O poder público assumiu o investimento em itinerário e a iniciativa privada de renovação da frota. E nós pagamos por quilômetro rodado. Foi essa equação que possibilitou resolver e funciona até hoje. Além disso, o sistema se paga por si mesmo. Então, é preciso ter uma boa equação, ter uma boa visão da cidade e fazer rápido. Ideia e estratégia.

Hoje seria possível implantar um projeto como o que foi feito em Curitiba? Seria mais difícil ou mais fácil?

Acho que a dificuldade está na imobilidade, na lentidão em quebrar paradigmas, mas pode ser tratado mais rapidamente hoje. Em Curitiba, não havia sistema, a população não conhecia. É difícil fazer algo que ninguém conhecia. Hoje existem os exemplos em mais de 100 cidades no mundo. Um prefeito se sente encorajado, ele quer mostrar o que funciona e não trabalha mais com o desconhecido.

O senhor fez críticas à política do Governo Federal relacionada à Copa. Por qual motivo?

Está totalmente equivocada. É preciso resolver os problemas de mobilidade. Ponto. Mas não para um evento. Num evento a coisa mais fácil do mundo é redirecionar a frota para aquele local específico. O que importa é o cotidiano das pessoas. Mobilidade não é só para levar as pessoas para o estádio, nem para levar as pessoas do aeroporto para o estádio. Está errado.

E em relação às desapropriações?

Não estou acompanhando de perto. Mas vejo de forma muito cuidadosa qualquer movimento para retirar as pessoas de suas casas principalmente sem dar oportunidade das pessoas darem a sua opinião. Mas não sei se esse é o caso, porque não acompanhei de perto.

Fonte: Tribuna do Norte